“Cantando eu vou andando”: afeto e violência no fluxo da cracolândia
Por Felipe Villela e Simone Gatti O pedaço da área central da cidade de São Paulo preferido por centenas de usuários de drogas em situação de rua é muito mais do que um grande mercado ilegal. É um ponto de encontro de pessoas pobres que levam uma vida radical, onde se estabelecem diálogos com uma intensidade delirante. Neste texto, acompanhamos integrantes do coletivo A Craco Resiste em duas festas na rua, um samba e um funk, onde quem faz a música são os usuários. Ao mesmo tempo retomamos a tradição marginal, desafiadora e artística da Boca do Lixo. Samba, sol e cerveja Tudo no largo estava pronto, os instrumentos no palco. Cadê os músicos? Marquinhos Maia pega um tantã, Raphael Escobar um pandeiro e partem para procurar os amigos no “fluxo”, como os íntimos preferem chamar a “cracolândia”. “Malandro eu ando querendo falar com você/ê malandro”, como diria mais tarde o samba de Jorge Aragão que tocou naquela tarde. Antes de entrar na Praça do Cachimbo, os dois, integrantes d’A Craco Resiste, repassam os nomes de quem querem encontrar. Num domingo (12/11) de sol forte e calor, aquele pedaço da Alameda Cleveland, entre as grades de um terreno descampado e a estação de trem Júlio Prestes, está lotado. No asfalto cruzamos com algumas pessoas sentadas. Já na calçada, homens em pé puxam uma lona preta armando uma, duas barracas. Atrás deles outras malocas já estão montadas. Muita gente fala, anda, grita e canta no meio do fluxo. Caminhamos até um homem tocando violão sentado numa mureta e assim que o alcançamos alguém grita do outro lado da multidão para o pessoal d’A Craco: “Ô, Escobar!”. “Ô Pirata!”. Escô corre com o pandeiro, passa o instrumento e se abraçam. O tantã de Marquinhos Maia já está nas mãos de outra pessoa e imediatamente a música começa, como disparada por uma fagulha. Outras pessoas se aproximam, conversam, combinam. Marquito Pirata e Érico vem com a gente agora. Fábio, que estava tocando violão, vai depois. Dennis e Du não foram encontrados. “Tem o tempo deles, né?” me diz Escobar enquanto caminhamos de volta para o palco no Largo General Osório, onde estava programado o encontro, com menos companhia do que se esperava. Ele lamenta especialmente que Fábio não tenha vindo. “Construímos o samba juntos,” o primeiro Samba na Lata com estrutura profissional. Quando chegamos de volta, Adailton Ferreira, o Adá, está fazendo a roda de cadeiras para os músicos. Gravata borboleta, camisa rosa e tênis amarelo, ele é músico profissional e já tocou outras vezes na Cracolândia a convite da Craco. Érico confere os instrumentos disponíveis, mexe nos dois microfones, ajeita algumas cadeiras e escolhe o lugar na frente do tantã. Trocamos algumas palavras. Ele é MC, trabalha no farol e diz porque saiu do fluxo só por hoje. “Aqui não é dinheiro, é a atenção, é a sua atenção”. Pirata senta a algumas cadeiras de distância com outro tantã e, do outro lado da roda, Escobar brinca com um pandeiro. Fora do palco a plateia começa se ajeitar. Primeiro duas menininhas com bonecas sentam no banco junto a mesa que serve de arquibancada. Elas estão com um homem andino que encosta numa árvore para acompanhar a primeira música: “Esse samba é pra você/É bonito de se ver/Cultura popular/Você não samba mas tem que aplaudir”. No fim da música chega Gaspar, um senhor com a voz muito grossa e rosto bem magro. Ele pega um tamborim e toca de pé. Marquinhos coloca uma tina plástica azul no meio da roda, enche com latas de cerveja, gelo e tampa. Pega outro pandeiro e senta. Perto dali, um grupo de adolescentes muito à vontade ocupa uma mureta e acompanha a movimentação atípica na sua praça com um olho no palco e outro na mesa pingpong, entre um tapa no baseado e outro no cigarro. Pirata puxa a próxima música: “Uma vontade de olhar, admirar/Isso é amor/Ô a ôa, ô a ô”. “Ó o Du! Ele apareceu!”, Escobar grita e levanta para abraçar o novo componente da roda. Gaspar havia ido chamá-lo e aproveitou para trazer de volta um grande saco de lixo preto. Ele deixa o saco ao lado da tina com cerveja, pega duas latinhas amassadas e bate uma na outra quase no compasso do samba. Para ele, este samba é festa e também uma oportunidade de catar latinhas e depois vendê-las para reciclagem. Devagar, devagarinho a plateia vai crescendo. Muita gente soube da roda pelo Facebook, onde desde dezembro de 2016 A Craco Resiste mantém uma página, que hoje alcança quase 17 mil seguidores, constantemente atualizada com notícias sobre operações policiais, violações de direitos, desmonte de programas municipais de assistência social, precarização dos trabalhadores vinculados a ONGs contratadas pela prefeitura e pelo Governo do Estado para atuar na região e sobre como é a vida nas ruas de São Paulo. No evento on-line havia 450 interessados e mais 64 confirmados. No momento mais cheio do samba, no entanto, aproximadamente 30 pessoas coordenam copos de cervejas compradas nos bares da vizinhança, cigarros e palmas. Aqui só bebe de graça quem está no palco embalando a festa. Ainda bem, porque não existe samba sem bebidas e quem vive na rua, como estes músicos, mal pode pagar para comer, dormir numa cama ou comprar roupas. Mas nem por isso o pessoal aqui anda maltrapilho. Érico, por exemplo, veste boné preto, corrente prateada no pescoço, regata cavada azul, bermuda listrada preto e branco e tênis branco com meias soquete da mesma cor. Pirata prefere boné Nike, cordão prateado combinando com a pulseira na mão esquerda, bermuda, tênis e camisa larga estampada nas costas com uma figura de dreadlocks segurando um charuto aceso na boca e os dizeres “E. C. Bola + 1”. Dennis, que acabou de chegar, está com óculos escuros de aros dourados combinando com o relógio, camisa de escola de samba e Crocs pretos como a bermuda. “Agora vai!”, alguém grita do meio da roda ao ver Dennis chegando. “Agora vai começar!”, ele diz com uma voz grossa apesar de amistosa e a boca aberta com um meio sorriso. Escobar levanta sorrindo e o abraça com força. “Quando minha cuca maluca computa você/É um tal do meu peito doer/É um tal do meu peito doer”. De fato, a roda esquenta depois que Dennis chega. “Um brinde ao Samba na Lata! É o começo de muito samba!”, grita Marquinhos e todos os músicos se levantam para brindar, cada um com a sua latinha de cerveja. O samba cresce com as pessoas que passam por ali e param para acompanhar a festa. É o caso de um homem que bate uma lata de leite vazia num “corote”, como se chama popularmente uma garrafinha plástica de cachaça. Outro chega com um grande saco preto nas costas. Sobe no palco, apoia o saco no chão e começa a sambar e cantar. De repente ele se abaixa e tira do saco um maço de cigarros, pega um, acende e joga o maço novamente lá dentro. Depois ele tira do saco uma garrafa de Sprite cheia com um líquido transparente, toma um gole, faz uma careta, tampa e a guarda novamente. De tanto sambar, o homem tira o casaco cinza e também o guarda no saco preto. Agora ele está só com uma camisa azul muito justa e calça jeans também justa. O cabelo liso e bem preto penteado para o lado está um pouco molhado, como se ele tivesse acabado de tomar banho. Enquanto isso, o homem com o corote já está enturmado, oferecendo goles para os músicos. Neste samba pode-se participar dançando, tocando de pé, fumando sentado ou deitado no chão, rolando na terra. É o caso de um homem que adormece entre o palco e a mesa de pingpong. Ele urina e a terra molhada gruda na sua calça. Os adolescentes, donos do pedaço, não o querem ali caído e ameaçam partir para a agressão física caso ele não vá embora. Um amigo quase tão bêbado o protege e, cambaleando, tenta levantá-lo. Pega-o pelos braços, puxa-o para cima, mas o homem reage como um boneco de pano. Está apagado. O amigo desiste, larga-o na terra novamente e vai embora. Pouco depois, o bêbado acorda e consegue se sentar. Um adolescente grita com ele, se aproxima e acerta um chute na sua cabeça. Ele desmorona no chão mais uma vez. O rapaz só não continua batendo porque uma mulher na plateia do samba intervém. “Deixa disso”. O rapaz se afasta e o homem fica lá, estendido no chão, apagado. “Destino por que fazes assim, tenha pena de mim/Veja bem, não mereço sofrer/Quero apenas um dia poder viver num mar de felicidade/Com alguém que me ame de verdade”. Entre os frequentadores do fluxo, álcool não é uma questão menor do que a ingestão compulsiva de “cocaína fumada”, forma de uso popularmente chamada de crack possivelmente pelo barulho que a pedra formada por pasta base de cocaína misturada com bicarbonato de sódio faz quando é queimada num cachimbo. A cocaína também pode ser aspirada ou injetada. Números de 2017 apresentados pelo Governo do Estado com base em amostragem com 136 pessoas no fluxo, num universo de aproximadamente 1.860 frequentadores da região, mostram que mais de 40% usam, concomitantemente, cocaína fumada, álcool e cocaína aspirada, 19,6% apenas cocaína fumada e 15,1% apenas álcool. Já o levantamento patrocinado pela Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas, feito em 2015 com 80 pessoas que aderiram ao Programa De Braços Abertos (DBA), mostrou que 80% dos entrevistados já havia usado álcool em algum momento da vida, a quarta substância mais citada. Em primeiro lugar aparece o tabaco, com 90% de menções, em seguida cocaína fumada com 85%, e em terceiro lugar está a maconha, citada por 83%. A cocaína aspirada aparece em quinto lugar, mencionada por 77% dos entrevistados. Entre os agentes de redução de danos que fazem abordagens na rua com usuários de drogas, é comum ouvir que é mais difícil lidar com um adicto de álcool, que se fecha depois do porre, do que com usuários de crack, que costumam estar mais abertos para aproximações. O DBA foi implementado em 2014 pela prefeitura de São Paulo com a proposta inédita no país de oferecer moradia em quartos de hotéis nas imediações do fluxo, em Campos Elíseos, e oportunidade de trabalho remunerado em atividades como varrição de ruas. Quem entrava no programa também tinha acesso facilitado a serviços de saúde. Tudo isto sem a obrigatoriedade de interromper o uso de cocaína fumada ou outras drogas. Mais do que abstinência, o programa pretendia reduzir danos associados ao uso de drogas. Em 2017, quando um novo grupo político assumiu a prefeitura, o programa foi praticamente extinto: hotéis foram descredenciados (alguns até emparedados) e os poucos profissionais ainda vinculados ao programa denunciam, hoje, a precariedade do trabalho e o medo de serem demitidos repentinamente. Música é diálogo No Samba na Lata também não é preciso estar de cara limpa para participar, apesar de ninguém parecer estar na onda da cocaína fumada. No dia do samba, o que passa de mãos em mãos não é um cachimbo “bolinha”, “calarga” ou improvisado com uma latinha de alumínio, mas sim instrumentos musicais. E cerveja e cigarros. O troca-troca de instrumentos chega a incomodar Érico, que depois do tantã pegou um pandeiro e agora quer o tantã de volta. “Tá quebrando o samba este passa passa de instrumentos”, ele diz. “Vai melhorar”, Pirata responde sorrindo, e completa como que coordenando a roda depois de decidirem que seria melhor desligar os microfones e os amplificadores: “A proposta é essa, som baixo e voz, sem espancar os instrumentos”. Uma lata nas mãos de um usuário de drogas em situação de rua pode virar cachimbo, chocalho e também “chapéu”, aquela forma tradicional de artistas pedirem dinheiro em apresentações na rua. Como Marquinhos explica: “A ideia é o pessoal contribuir pro samba ficar autônomo”. Enquanto fala, apresenta uma grande lata de alumínio vazia e passa adiante. O som de moedas chacoalhando no metal percorre a plateia. Neste momento Gaspar tem um rompante de agressividade e começa a ameaçar, sem motivo aparente, a pessoa que está com a lata. Violência repentina é um comportamento comum deste senhor que costuma beber muito, como me explica um amigo seu. “Tá acabando com o nosso samba, rapá”, Pirata repreende Gaspar. “Este samba é família. Vamos parar aí", Érico complementa. “Então me ajuda a segurar/Essa barra que é gostar de você/Iê/Didididiê”. A vontade d`A Craco Resiste é agendar mais shows para o grupo levantar dinheiro. Escobar diz até que tem mais duas apresentações engatilhadas. Depois desta primeira apresentação, os amigos do fluxo chegaram até a dizê-lo, numa segunda-feira, que estavam ensaiando todos os dias da semana. Mas quando ele passou na Praça do Cachimbo, no dia seguinte, não encontrou nenhum samba. Raphael Escobar frequenta a praça quase diariamente há cinco anos. Chegou até a morar uma semana no fluxo colaborando com a pesquisa de uma amiga. Ele descansava na maloca do Dennis e o samba rolava das 22h até o sol nascer. Nestes anos, o graduado em artes visuais trabalhou com redução de danos no uso de drogas em diferentes ONGs e programas municipais direcionados à cracolândia. Atualmente, está no Serviço de Assistência Especializada (SAE) em DST/Aids de Campos Elíseos, na Alameda Cleveland. Até durante o carnaval, quando as pessoas costumam tirar férias do trabalho, Escobar foi pular com usuários e trabalhadores da região no Blocolândia – cordão carnavalesco articulado pelo Coletivo Sem Ternos que desfilou pela primeira vez em 2015. No mesmo ano, em maio, fazer música foi a estratégia d`A Craco Resiste, movimento filhote do Sem Ternos, para segurar uma vigília de observadores dos direitos humanos durante a última grande operação policial, que deixou um saldo de usuários feridos, portas de quartos de pensões arrombadas, móveis quebrados, e bares, pensões e hotéis lacrados. No mesmo dia da operação, o atual prefeito declarou que a cracolândia havia acabado enquanto passeava por ruas vazias de Campos Elíseos. No entanto, a apenas duas quadras dali os usuários começavam a se juntar na Praça Princesa Isabel. Semanas depois estavam de volta à Praça do Cachimbo, na Alameda Cleveland. Zonas temporárias Antes do “fluxo” estar concentrado no espaço pequeno que compreende apenas uma pracinha e um trecho da Rua Helvetia, perto da Alameda Cleveland, surgiram e sumiram pontos de encontro de usuários nas imediações da Estação da Luz, para o lado da Santa Ifigênia, perto do largo onde aconteceu o Samba na Lata. Esta região foi a primeira a ficar conhecida como “cracolândia” em São Paulo, e possivelmente no Brasil. Apesar de a primeira apreensão de pedra de crack no país ter acontecido na periferia da cidade de São Paulo, em 1988, o topônimo só começou a recair sobre a Luz na época em que o Departamento do Controle e Uso de Imóveis (Contru), órgão da Secretaria Municipal de Habitação (Sehab), interditou 39 hotéis, pensões e bares na área, em 1999. Desde então, os encontros para comprar e consumir crack passaram a acontecer nas ruas, segundo levantamento feito por Luciane Raupp para sua tese de doutorado sobre os circuitos de uso de crack na cidade. Acompanhando reportagens de jornal, os pontos de encontro não pararam de se multiplicar e mudar de lugar por conta de operações policiais nos anos seguintes, sempre num raio percorrido com poucos minutos a pé. Em 2005 a prefeitura promoveu a Operação Limpa, ao mesmo tempo em que foi promulgada uma lei com incentivos fiscais para que proprietários ampliassem ou reformassem imóveis na região. Por conta desta repressão, em 2006 usuários haviam cruzado a Avenida Duque de Caxias ocupando a Rua Helvetia e a Alameda Barão de Piracicaba, em Campos Elíseos. Em 2007, usuários também podiam ser encontrados na Alameda Dino Bueno, Rua Ana Cintra, praças Júlio Prestes e Princesa Isabel, como Heitor Frúgoli Jr e Enrico Spaggiari mostram em pesquisa sobre a “territorialidade itinerante” da cracolândia. Em 2009, a prefeitura transforma a antiga lei de incentivos fiscais no projeto Nova Luz, que também previa a concessão à iniciativa privada de imóveis e espaços públicos em toda a região compreendida pelas avenidas Duque de Caxias, São João, Ipiranga, Cásper Líbero e Rua Mauá. Em 2012, o projeto ainda não havia saído do papel, mas continuava orientando ações de repressão na área, como a Operação Sufoco. Em 2013, o Nova Luz foi definitivamente engavetado. Depois de tantos deslocamentos, o único ponto onde uma grande reunião de usuários ainda é tolerada pela polícia inclui um trecho da Rua Helvetia e as praças do Cachimbo e Júlio Prestes. Os usuários são obrigados a circular por ali três vezes ao dia, sempre que a prefeitura lava ruas e calçadas com carros pipa e enormes mangueiras. Geralmente os usuários saem do caminho quando os jatos d`água se aproximam, mas as vezes também rola um “futibomba” – quando a polícia lança bombas de gás para espantar as pessoas. “Limpam a rua toda depois ela volta ao normal”, como nos disse um frequentador da área. Por mais confinado que esteja, o fluxo está ameaçado, mais uma vez, por um novo projeto de transformação da área: uma parceria público-privada (PPP) promovida pelo Governo do Estado com apoio da prefeitura para construir torres residenciais depois da demolição dos prédios onde famílias pobres e trabalhadores informais, não necessariamente usuários de drogas, vivem no aluguel. As primeiras torres já estão quase prontas no lugar onde existiam hotéis, pensões, bares e um shopping popular (que foi a principal rodoviária da cidade) demolidos entre 2010 e 2013. Mesmo com tantos ataques, ainda resiste a tradição da região que há quase 70 anos é um misto de zona de confinamento e refúgio. Em 1940, surgiu perto dali a primeira zona oficial de prostituição da cidade, nas Ruas Itaboca (atualmente Cesare Lombroso), Aimorés, Carmo Cintra e trecho da Ribeiro de Lima, no bairro do Bom Retiro. Foi lá que o termo “zona” ficou popularmente identificado com lugares frequentados por boêmios, prostitutas, malandros, michês e travestis, como mostra Sarah Feldman no livro sobre planejamento e zoneamento dos anos 1940 até a década de 1970. Enquanto existiu, a zona foi o lugar da boemia, onde a noite da cidade acontecia, como Hiroito de Moraes Joanides, o Rei da Boca, conta em sua autobiografia. Para os governantes, a zona foi uma estratégia para manter atividades moralmente reprováveis longe das áreas onde florescia o mercado imobiliário. Quando a prostituição feminina foi proibida por lei, uma violenta operação policial esvaziou os hotéis da zona, em 1953, episódio descrito com muito sangue, fogo e brutalidade por João Antônio no conto Paulinho Perna Torta. Arte e refúgio A extinção da zona de confinamento da prostituição no Bom Retiro fez surgir a Boca do Lixo no lugar onde as profissionais do sexo moravam, vizinhas de boêmios, ladrões e egressos do sistema prisional. A partir desta época, a Av São João vira um eixo de lazer adulto, e a região vira sinônimo de negação do trabalho regular, como o da fábrica. A Boca surge, então, como um “refúgio” para os trabalhadores que não se enquadram nas profissões bem aceitas moralmente, como a historiadora Herta Franco costuma dizer. Nos anos seguintes, atores, produtores de cinema, pequenos comerciantes, ambulantes, prostitutas e jornalistas procuraram este refúgio e fizeram a fama da região enquanto a indústria do cinema engatinhava no país. Nos anos 70, quase toda a produção nacional vinha deste lugar “onde putas viram atrizes e atrizes viram putas”, como Paulo Faria, diretor da Companhia Pessoal do Faroeste com sede na Rua do Triunfo, gosta de descrever a história da região que tanto inspira suas peças. Quando o cinema brasileiro fica glamoroso e mais careta, nos anos 80, as produtoras migram para longe da Boca, especialmente para a Vila Madalena. A intensidade dramática e a diversidade da vida na região central da cidade que inspirou produtores e diretores de cinema nos anos 1970, agora também se torna arte com as ações de artistas redutores de danos, como Escobar. Quando usuários de crack viram músicos, rappers ou sambistas, é como se A Craco Resiste retomasse a tradição artística marginal e radical da Boca do Lixo. Uma tradição que é também resistência ao estigma e à eliminação de um modo de vida particular: ora violento, ora carinhoso, ora boêmio, ora degradante, ora assustador, ora refúgio, sempre radical e intenso. Funk, gasolina e corote “Essa imagem não sai da minha cabeça: eu com o fone [de ouvido], a telinha do microfone e o DJ do meu lado”, nos diz Dennis no dia em que a primeira música que gravou num estúdio é lançada em pleno “fluxo”. Na hora em que a composição de Dennis e Meia-Noite estava estourando na caixa de som, contamos para um rapaz descalço que circula pela pista de dança com uma marmita na mão e um garfo na outra que aquela música é dos seus amigos. “Essa aí? Essa que tá tocando? Sério?”, ele quase não acredita. “Aí, dá mó apoio pro meu amigo, tá bom”, escutamos de outra mulher quando conto a mesma história. Dennis Alberto (38) está mais a vontade no segundo encontro, na sexta-feira (15/12), e no lugar que conhece bem, na frente da tenda de acolhimento de pessoas em situação de rua quase na esquina da Rua Helvetia com a Alameda Cleveland, do que no mês anterior no Samba na Lata, no Largo General Osório. Além dos indefectíveis óculos escuros, desta vez de aro rosa, ele veste apenas uma bermuda. A trilha sonora deste encontro também tem mais a ver com o seu estilo, que gosta de compor rap e reggae. Ele começou a escrever letras de música quando foi preso pela terceira vez, em 2008, e decidiu voltar a estudar e aprender violão. Em 2013 saiu da cadeia, passou um tempo na casa dos pais no Jabaquara e há um ano e sete meses vive nas ruas da região central. Ele se mostra orgulhoso da música que gravou com a ajuda do DJ CIA, apesar da letra misturar versos de um reggae que ele compôs quando ainda estava na prisão com as improvisações do Meia-Noite, um amigo rapper. “Eu aprendi alguma coisa ali [no estúdio de gravação]. Quem sabe faço isso de novo?”. “Cantando eu vou/Falando e cantando eu vou/Bla bla bla bla bla bla”, a voz de Dennis abre a música e aparece em cada refrão. O som rola na rua graças a um potente amplificador ligado num gerador à gasolina. Cinco usuários ajudaram Escobar a trazer a pé, debaixo de muito sol, os equipamentos que ficam guardados no Teatro de Contêiner Mungunzá, a algumas quadras dali. Depois de tocar a música inédita, o celular de Escobar vira uma jukebox. Os pedidos são organizados numa folha e quem indicou a música ajuda a encontrá-la no Youtube. A pista, dominada por homens, esquenta com funks como do MC Fioti, “Vai mexe o bumbum tam tam/Vem desce o bumbum tam tam”, ou Cavucada do DJ Henrique de Ferraz. Com a festa ainda vazia, um homem cadeirante segura um pequeno espelho junto com um cachimbo metálico enquanto penteia para cima o cabelo que parece duro de tão sujo. Pouco antes ele estava sem camisa recebendo um corte de cabelo de outro homem também sem camisa. O cabeleireiro balançava o corpo e mexia a tesoura no ritmo da música que estivesse tocando, circulando com displicência em torno da cabeça ruiva do homem na cadeira de rodas. “Menor, muleque maloqueiro/Mundo mágico, menino mulherengo/Misterioso, malvado, me mostrou malandros malandriados/Maioral, melhores momentos/Marginal, maldito movimento”. Na pista, uma mulher dança com a blusa levantada junto com os braços para acender um cachimbo com um “bic” – palavra que substitui “isqueiro” no fluxo desde que, reza a lenda, um homem conhecido como Isqueiro morreu. Outro homem dança com uma arma de brinquedo de criança na mão. “Ô, coloca outra pra nóis aí”. “Cinco dias de terror/O Brasil parou pra ver/Quem manda/Quem manda/Quem manda é o PCC”. As regras ali são claras: ninguém pode filmar ou fotografar, a não ser que tenha autorização dos “irmãos”, os gerentes locais do tráfico ligados ao “movimento”. Assim, procura-se evitar tanto a identificação de alguém foragido da justiça quanto a exposição de frequentadores do fluxo às suas famílias. A equipe de cinegrafistas que pretendia registrar o lançamento da música sabia disso, mas um deles estava com uma câmera desligada na mão. Um homem sentado em frente à caixa de som levanta de repente e agarra a câmera. O cinegrafista, conhecido na área e amigo de Escobar, explica que não gravou nada, oferece mostrar as imagens para comprovar, mas o homem não aceita. O tumulto está armado. Outras se aproximam e agarram o equipamento, que agora é como um cabo de guerra. Dizem para o homem soltar a câmera, puxam com força mas não adianta. Dennis e outros usuários estão ali tentando convencê-lo até que, CRACK!, o microfone direcional arrebenta, a câmera fica na mão do cinegrafista e parte do microfone com o homem desconfiado. Ainda tentam fazê-lo soltar o pedaço do equipamento e desistir da briga, mas nada adianta até que chega o Massa e começa a socá-lo no peito enquanto grita com a voz muito grossa. O homem finalmente solta todo o equipamento e é rebocado para as malocas na Praça do Cachimbo. Pouco depois, volta outra pessoa pedindo a câmera para levar aos irmãos. Escobar mesmo pega o equipamento e vai até uma maloca. Lá dentro, checam mais de uma vez todas a imagens gravadas, escutam a história do artista e a do homem, novato no pedaço. Amigos do fluxo explicam que Escobar é conhecido de todos, que confiam nele e que o homem não tinha porque ficar paranoico. O irmão aceita o argumento e declara: “Então não tem ideia, acabou”. Devolvem o equipamento. Depois de alguns minutos o homem paranoico cruza a rua chorando e dizendo que os cinegrafistas mentiram. Algumas pessoas pedem para a música voltar. “Foi numa noite de frio, que eu te encontrei com o coração vazio filho/Perdido e sem rumo, sem prumo e sem direção”. O som logo para de novo, a gasolina do gerador está acabando. “Vou abastecer de cachaça”, grita um rapaz todo sujo, o olho roxo, com um corote na mão – a garrafinha de cachaça. Puxam a corda do gerador algumas vezes e nada. “Energia agora, positiva. Vamos tirar toda a energia negativa”, diz um homem estendendo as mãos abertas sobre o gerador. Alguém puxa a corda e o motor dispara. “Aê, não falei!”. A alegria dura pouco. “Se não botar um som eu vou tirar a minha roupa!”, grita um homem de dentro da tenda quando o motor falha novamente. “Vamos ratear a gasolina!” outro homem grita animado perto da caixa de som. Não adianta. Acabou a gasolina, acabou o som, acabou a festa de lançamento da música feita por dois frequentadores do fluxo. Mais uma vez o Massa e outros ajudam a carregar os equipamentos de volta para o teatro. Quando o grupo já havia virado na Alameda Dino Bueno em direção à Praça Júlio Prestes, Dennis aparece para se despedir de Escobar. Eles se aproximam, conversam rapidamente e trocam um forte abraço. |
“I’M SINGING WHILE I WALK” : Affection and violence in the flow of Cracolandia
The central area of the city of São Paulo, an area preferred by hundreds of consumers of drugs, homeless people, is much more than a large illegal market. It is a meeting point for people living in poverty who lead a radical life, where dialogues are established with delusional intensity. Samba, sun, and beer Everything in the square is ready. The instruments are on the stage, but where are the musicians? Marquinhos Maia takes a tantán (percussion instrument), Raphael Escobar grabs a tambourine, and they go in search of their friends in the “flow,” as some prefer to call Cracolandia. “Malandro, eu ando querendo falar com você/ê malandro,” Jorge Aragão’s samba would later say. Before entering Cachimbo Square, the two members of A Craco Resiste review the names of the people they seek. It’s a scorching hot Sunday, and that area on Cleveland Boulevard, between the fences of an open field and the Julio Prestes train station, is full. On the asphalt we meet some people who are sitting. On the sidewalk, a group of men roll out a black tarp to mount two tents. Behind them, other tents are already up. Many people talk, walk about the place, yell, and sing in the middle of the flow. We walk up to a man who plays guitar leaning against a wall, and when we reach him, someone yells from the other side of the crowd: “Escobar! The Pirate!” Escobar runs with the tambourine, hands over the instrument, and hugs the stranger. Marquinhos Maia’s tantán is already in someone else’s hands and the music begins immediately, as if fired up by a spark. Other people come closer. They talk. They come to an agreement. Marquito Pirata and Érico now walk with us. Fábio, who was playing the guitar, joins the group later. Dennis and Du did not show up. “They have their own timing, right?” says Escobar while we walk back to the stage in the General Osório Square, where the meeting had been scheduled, with fewer people than expected. Escobar is particularly regretful that Fábio has not come. “We built the samba together,” the first Samba na Lata with professional structure. When we return, Adailton Ferreira, aka Adá, is organizing conference chairs in a circle for the musicians. Wearing a bow tie, pink shirt, and yellow tennis shoes, Adá is a professional musician and has played several times in Cracolandia, invited by A Craco Resiste. Érico checks the available instruments, moves the two microphones, rearranges some chairs, and picks a place at the front for the tantán. We exchange a few words. He is an MC, works at the lighthouse, and tells us why he got out of the flow just for today: “There’s no money here, it’s the attention, it’s their attention.” The Pirate sits a few chairs away with another tantán, and on the other side of the circle, Escobar tinkers with the tambourine. Away from the stage, the audience starts to take their seats. First, two girls with dolls sit on the bench next to the table that is used as bleachers. They’re accompanied by a man who leans against a tree to listen to the first song: “Esse samba é pra você/É bonito de se ver/Cultura popular/Você não samba mas tem que aplaudir.” Eventually Gaspar shows up. He is a man with a deep voice and a thin face, who takes a drum and plays standing up. Marquinhos places a blue plastic tub in the middle of the circle. It is full of cans of beer and ice. Then he grabs another tambourine and takes a seat. Nearby, a group of comfortable-looking teenagers occupies a wall and accompanies the atypical movement in their square with one eye on the stage and another on the ping-pong table, between hits of marijuana and cigarette smokes. The Pirate starts to play the next song: “Uma vontade de olhar, admirar/Isso é amor/Ô a ôa, ô a ô.” “Du! He’s here!” Escobar cries and gets up to hug the new member of the circle. Gaspar had gone out to look for him and took the opportunity to bring back a big black trash bag. He leaves the bag by the tub with the beer, takes two empty cans, and clashes one against the other almost to the beat of the samba. To him, this samba is a party, but it is also a chance to collect cans to sell as recycling. Slowly, slowly, the space fills up with the audience. A lot of people had found out about the circle through Facebook where A Craco Resiste keeps a page since December 2016, which today has nearly 17,000 followers. The page is constantly updated with news about police operations, rights violations, the dismantling of municipal social assistance programs, the precarious conditions of workers linked to NGOs hired by the Mayor’s Office and by the State government to act in the region. It also includes information on what life is like in the streets of São Paulo. The online event had 450 interested people and 64 confirmed attendees. At the samba’s fullest moment, however, approximately 30 people distribute beers bought in neighboring bars and cigarettes. They all clap together. Only those who are on stage making the party drink for free here. That’s a good thing, because there is no samba without drinks, and homeless people like these musicians can barely afford to eat, sleep in a bed, or buy clothes. But even so, people are not wearing rags here. Érico, for example, is wearing a black cap, silver neck chain, blue sleeveless shirt, black and white striped shorts, and white tennis shoes with tube socks the same color. The Pirate prefers a Nike cap, silver chain which matches the bracelet on his left hand, shorts, tennis shoes, and a bowling shirt stamped on the back with a figure with dreadlocks holding a lit cigar and the sign: “E. C. Bola +1.” Dennis, who has just arrived, is wearing gold frame sunglasses that match his watch, the samba school shirt, and black crocs, black as his shorts. Now!” someone yells in the middle of the circle when they see Dennis. “This is gonna start now!” he responds with a voice that is deep but friendly and his mouth open in a half smile. Escobar gets up smiling and hugs him tightly. “Quando minha cuca maluca computa você/É um tal do meu peito doer/É um tal do meu peito doer.” The circle heats up with the arrival of Dennis. “A toast to the Samba na Lata! It’s the beginning of a lot of samba!” Marquinhos yells and all the musicians stand up for the toast, each one with their own can of beer. The samba grows with the people that pass by and stop there to accompany the party. This is the case of a man who takes an empty can of milk in a corote, the popular name of a small plastic bottle of cachaça. Another one arrives with a big black bag on his back, climbs up on the stage, leaves the bag on the floor, and begins to dance and sing. Suddenly, he climbs down and pulls a pack of cigarettes from the bag, takes one, lights it, and puts the package back in the bag. Then he pulls a bottle of Sprite out of the bag. It is filled with a clear liquid. He takes a sip, grimaces, closes the bottle, and puts it away once again. There is so much samba that the man takes off his gray blazer and puts it away in the bag as well. Now he is only wearing a tight blue shirt and tight jeans. His straight jet-black hair, parted sideways, is a little wet, as if he had just taken a bath. Meanwhile, the man with the corote is already in a party mood and offers sips to the musicians. In this samba one can participate by dancing, playing standing up, sitting down smoking, or lying on the floor, rolling in the dirt. This is the case of a man who falls asleep between the stage and the ping-pong table. When he urinates, wet soil gets stuck on his pants. The young owners of the place don’t want him lying there and threaten to attack him physically if he doesn’t beat it. A friend who is almost as drunk as him protects him, and teetering, tries to lift him up. He takes him by the arms, pulls him up, but the man reacts like a rag doll. He’s down. The friend gives up, puts him back on the ground, and leaves. Shortly after, the drunk man wakes up and manages to sit up. A young man yells at him, approaches him, and kicks him on the head. The man crumbles down on the ground once more. The young man stops kicking him because a woman from the samba audience intervenes. “Stop that.” The young man leaves and the man lies there, spread on the floor, knocked out. “Destino por que fazes assim, tenha pena de mim/Veja bem, não mereço sofrer/Quero apenas um dia poder viver num mar de felicidade/Com alguém que me ame de verdade.” Among the flow’s regulars, alcohol is not a minor issue compared to the compulsive ingestion of “smoked cocaine,” a form of use most commonly known as crack, possibly due to the noise made by the stone made of cocaine base paste mixed with baking soda when burned in a pipe. Cocaine can also be snorted or injected. 2017 numbers submitted by the State government, based on a sample comprising 136 people from the flow, out of a universe of approximately 1,860 regulars from the region, show that more than 40 percent of the people use, concomitantly, smoked cocaine, alcohol, and snorted cocaine; 19.6 percent consume only smoked cocaine, and 15.1 percent, only alcohol. The analysis sponsored by the Brazilian Platform for Drug Policy, conducted in 2015 with 80 people that had joined the Open Arms Program (DBA), showed that 80 percent of respondents had consumed alcohol at some point in their life. Among the most cited substances, tobacco appears in first place, with 90 percent of mentions; followed by smoked cocaine with 85 percent, and in third place, marijuana, cited by 83 percent of the people. After alcohol, snorted cocaine appears in fifth place, mentioned by 77 percent of the respondents. Among the harm reduction agents working in the street with drug consumers, it is common to hear that it is harder to deal with an alcohol addict, who shut themselves off after the hangover, than with crack users, who are often more open to being approached. The DBA was implemented in 2014 by the São Paulo Mayor’s Office, with a proposal unprecedented in the country to offer housing in hotel rooms near the flow, in Campos Elíseos, as well as opportunities for paid work in activities such as street sweeping. Those who entered the program also had access to health services. All this without the obligation to interrupt the use of smoked cocaine or other drugs. More than abstinence, the program intended to reduce harm associated with the use of drugs. In 2017, when a new political group took the Mayor’s Office, the program was virtually terminated: the hotels were discredited, and the few professionals still linked to the program condemn today the precariousness of their job and the fear to be fired abruptly. Music is dialogue In Samba na Lata, it is not necessary to be clean to participate either, but no one seems to be riding the wave of smoked cocaine. The day of the samba, what passes from hand to hand is not a “bolinha” pipe or a “calarga” improvised with an aluminum can, but musical instruments instead, in addition to beer and cigarettes. The exchange of instruments is uncomfortable to Érico, who had grabbed a tambourine after the tantán and now wants the tantán back. “This passing of instruments from hand to hand is breaking the samba,” he says. “It’s going to get better,” the Pirate replies, smiling, and as if he were coordinating the circle, he decides to unplug the microphones and amplifiers: “This is what we’re going to do now: low sound and voice, without hitting the instruments.” A tin on the hands of a drug user can become a pipe, a rattle, and a “hat,” the traditional way for artists to ask money during street performances. As Marquinhos explains: “The idea is for people to contribute so that the samba becomes autonomous.” As he speaks, he presents a big empty aluminum can and comes forward. The sound of coins on metal goes around the audience. At that moment, Gaspar begins to threaten the person holding the can with no apparent reason. Sudden violence is common in this man who has the habit of drinking a lot, as a friend of his explains. “It’s killing our samba, pal!” The Pirate reprimands Gaspar. “This samba is family. Stop it,” Érico adds. “Então me ajuda a segurar/Essa barra que é gostar de você/Iê/Didididiê”. The idea of A Craco Resiste is to schedule more shows so that the group raises money. Escobar says he has two more shows pending. After this first concert, the friends of the flow even tell him that they had been rehearsing every day of the week. But when the next day arrives in Cachimbo Square, he finds no samba. Raphael Escobar has been hanging out at the square almost every day for five years. He even lived in the flow for a week to help a friend in their research. He would rest in Dennis’s tent and there would be samba from 10pm until sunrise. During these years, the visual artist worked with harm reduction in the use of drugs in different NGOs and in municipal programs targeting Cracolandia. He currently works at the Specialized Care Service (SAE) in STDs/AIDS (sexually transmitted diseases) in Campos Elíseos, on Cleveland Boulevard. Up until the Carnival, when Brazilians have the habit of taking time off from work, Escobar had been supporting consumers and workers from the region of Blocolandia—a carnival-like belt coordinated by the Colectivo Sem Ternos, which paraded for the first time in 2017. The same year, in May, making music was the strategy of A Craco Resiste—this movement having stemmed out of Sem Ternos—for holding a vigil of human rights observers during the last big police operation, which left several injured consumers, doors of pension rooms shattered, broken furniture, and bars, pensions, and hotels closed. The same day the operation took place, the current mayor of São Paulo stated that Cracolandia was history while walking by the empty streets of Campos Elíseos. However, only two blocks from there, the inhabitants of the area were beginning to congregate in the Princesa Isabel Square. Weeks later they were back in Cachimbo Square, on Cleveland Boulevard. Temporary areas Before the flow concentrated in the small space comprising only one square and a stretch of Helvetia Street, near Cleveland Boulevard, meeting points for consumers emerged and disappeared in the vicinity of La Luz Station, near Santa Ifigênia, by the square where Samba na Lata took place. This region was the first to be known as Cracolandia in São Paulo, and possibly in Brazil. Although the consumption of crack cocaine in the country occurred first in the periphery of São Paulo in 1988, the placename only began to fall on La Luz at the time that the Department of Control and Use of Property (Contru), a body of the Municipal Secretary of Housing (Sehab), closed 39 hotels, pensions, and bars in the area, in 1999. Since then, meetings for buying and consuming crack began to take place in the streets, according to research carried out by Luciane Raupp for her PhD thesis on the circuits of crack cocaine use in the city. As told by media reports, the meeting points were not prevented from multiplying and changing venues by police operations carried out during the following years, always on a stretch covered on foot for a few minutes. In 2005, the Mayor’s Office promoted Operation Clean, while a law was enacted with tax incentives for owners to expand or reform properties in the region. On account of this repression, in 2006, consumers crossed Duque de Caxias Avenue to occupy Helvetia Street and Barão de Piracicaba Boulevard, in Campos Elíseos. In 2007, the area’s inhabitants also moved toward Dino Well Boulevard, Ana Cintra Street, and Julio Prestes and Princesa Isabel squares, as Heitor Frúgoli Jr. and Enrico Spaggiari show in their research on the “itinerant territoriality” of Cracolandia. In 2009, the Mayor’s Office transformed the ancient law of tax incentives in the Nova Luz project, which also envisioned granting buildings and public spaces across the entire area between the Duque de Caxias, São João, Ipiranga, Cásper Líbero, and Rua Mauá avenues to private initiative. In 2012, the project was still only on paper, but it kept pushing actions of repression in the area, such as Operation Emergency. In 2013, the Nova Luz project was definitely blocked. After many displacements, the only point where a great gathering of consumers is still tolerated by the police includes a stretch of Helvetia Street and the Cachimbo and Julio Prestes squares. Consumers are forced to move around there three times a day when the Mayor’s Office washes the streets and sidewalks with tanker trucks and huge hoses. Consumers usually move out of the way when the jets of water approach, but sometimes they also get a “futibomba” thrown, that is, when the police throw gas bombs to intimidate people. “They clean the whole street, but then it goes back to normal,” a regular of the area told us. However confined it may be, the flow is threatened, once again, due to a new transformation project for the area: a public-private partnership promoted by the State government, with support of the Mayor’s Office, to build residential towers after the demolition of the buildings where poor families and informal workers, not necessarily drug consumers, used to live in rental. The first towers are almost ready in the place where there used to be hotels, pensions, bars, and a popular shopping center (originally the main bus station of the city), demolished between 2010 and 2013. Even with so many attacks, tradition still stands in a region that used to be a mixture of containment area and shelter for nearly 70 years. In 1940, the first official red-light district of the city emerged near that place, on Itaboca (currently Cesare Lombroso), Aimorés, and Carmo Cintra streets, and a stretch of Ribeiro de Lima in the Bom Retiro neighborhood. It was there where the term “area” was popularized to refer to places frequented by free spirits, prostitutes, criminals, gays, and transvestites, as shown by Sarah Feldman in her book on planning and zoning between the 1940s and 1970s. While it existed, the area used to be the place for free spirits, where the night of the city happened, as Hiroito de Moras Joanides, the King of Boca, mentions in his autobiography. For the governors, the area was a strategy for maintaining morally reprehensible activities away from the areas where the real estate market flourished. When female prostitution was prohibited by law, a violent police operation emptied the area’s hotels in 1953. This episode was described with much blood, fire, and brutality by João Antônio in his short story “Paulinho Perna Torta.” Art and shelter The extinction of the containment area for prostitution in Bom Retiro caused Boca do Lixo (Mouth of Garbage) to arise in the place where free spirits, thieves, and ex-convicts also lived. Since then, an axis of adult entertainment was created on São João Avenue, as well as a region synonymous with the denial of regular work. Boca emerged, then, as a ‘shelter’ for workers that did not fall within morally acceptable professions, as told by historian Hera Franco. In the following years, actors, film producers, small merchants, peddlers, prostitutes, and journalists sought refuge here and gave fame to the region, while the film industry was just beginning in the country. During the 1970s, almost all the national film production came from this place, ”where whores become actresses and actresses, whores,” as Paulo Haría, director of the Personal Faroeste Company, based on Triunfo Street, likes to describe the history of the region that has inspired his work so strongly. When Brazilian cinema became more glamorous and conservative, in the 80s, producers migrated away from Boca, especially towards Vila Madalena. The dramatic intensity and diversity of life in the central region of the city, which inspired producers and film directors in the 1970s, is now too becoming art with the actions performed by damage reducing artists like Escobar. When crack users become musicians, rappers, or sambistas, it’s as if A Craco Resiste were bringing back the marginal and radical artistic tradition of Boca do Lixo. This tradition is also resistance against stigma and against the elimination of a particular way of life: sometimes violent, sometimes affectionate, sometimes free-spirited, sometimes degrading, sometimes overwhelming, sometimes refuge, but always radical and intense. Funk, gas, and corote “That image is forever stuck in my head: I’m holding the earpiece, the microphone, and the DJ is standing by my side,” Dennis tells us on the day the music he had recorded in a studio is released right in the middle of the flow. Right at the moment when the composition by Dennis and Meia-Noite is booming in the amplifiers, we tell a barefoot boy, who roams around the dance floor with a lunchbox in one hand and a fork in the other, that that music is his friends’. “That one? The one playing? Seriously?” He almost can’t believe it. “Then I support my friend, what he does is good,” we hear from another woman when I tell her the same story. Dennis Alberto, 38, is more comfortable during the second encounter, on Friday, December 15, and in a place he knows well: in front of welcome tent for people living in the street, almost on the corner of Helvetia Street and Cleveland Boulevard. In addition to the infallible shades, this time with a pink frame, he is wearing shorts. The soundtrack of this encounter is also more related to his style, as he likes to compose rap and reggae. Dennis began to write lyrics when he went to jail for the third time, in 2008, and decided to go back to school and learn guitar. In 2013 he got out of jail, spent time in his parents’ home in Jabaquara, and one year and seven months ago he started to live in the streets of the central region. He is proud of the music he recorded with the help of DJ CIA, despite the fact that the lyrics mix verses of a reggae that he wrote when he was still in prison with the improvisations of Meia-Noite, a rapper friend. “I learned something there [in the studio]. Who knows if I’ll ever do it again.” “Cantando eu vou/Falando e cantando eu vou/Bla bla bla bla bla bla,” Dennis’s voice opens the song and appears in each refrain. The music echoes in the street thanks to a powerful amplifier connected to a gas generator. Five people had helped Escobar to bring by foot, under a scorching sun, the equipment that was stored inside the Contenedor Mungunzá Theater, a few blocks away from there. After playing the unreleased music, Escobar’s cellphone becomes a jukebox. The orders are organized in a sheet and those who have requested music help find it on YouTube. The dance floor, dominated by men, lights up with funk tracks such as the one by MC Fioti, “Vai mexe o bumbum tam tam/Vem desce o bumbum tam tam,” or Cavucada by DJ Henrique de Ferraz. In the midst of the party, still empty, a man in a wheelchair with a metal pipe holds a small mirror while he combs up his hair, caked with dirt. Shortly before, the guy had taken his shirt off while getting a haircut from another man, also shirtless. The hairdresser was swinging his body and moved his scissors to the beat of the music, “Menor, muleque maloqueiro/Mundo mágico, menino mulherengo/Misterioso, malvado, me mostrou malandros malandriados/Maioral, melhores momentos/Marginal, maldito movimento.” On the dance floor, a woman dances with her top pulled up while she lights a pipe with a “bic”—a word that has come to mean “lighter” in the flow since, legend goes, a man known as Lighter died—. Another man dances with a toy gun in his hand: “Hey, play another one for us.” “Cinco dias de terror/O Brasil parou pra ver/Quem manda/Quem manda/Quem manda é o PCC.” The rules are clear over there: no recording or taking pictures, unless one has permission from the ‘brothers,’ local traffic managers connected to the “movement.” This prevents the identification of someone fugitive from justice, as well as the exposure of regulars of the flow to their families. The team of cameramen that intended to record the launch was aware of that, but one of them was holding a switched off camera in his hand. Suddenly, a man sitting in front of the amp gets up and grabs the camera. The cameraman, known in the area, and a friend of Escobar’s, explains that he did not record anything and offers to show the images to prove it, but the man does not accept. Mayhem ensues. Other people draw near and grab the equipment, which has now become a tug-of-war. They ask the man to drop the camera, they struggle, but it’s no use. Dennis and other consumers are trying to convince him when CRACK! The directional mic breaks, the camera is in the hands of the cameraman, and part of the microphone is left with the wary man. They still try to make him drop the piece of broken equipment and give up the fight, but nothing changes until Masa arrives and starts to hit him in the chest as he screams with a very deep voice. The man finally lets go of the equipment and is taken to the tents in Cachimbo Square. Shortly after, another person comes back asking for the camera to take it to the brothers. Escobar takes the equipment and goes up to a tent. Once inside, they check more than once all the recorded images. They listen to the artist’s story and that of the man, a rookie in the area. Friends of the flow explain that Escobar is known by all, that they trust him, and that the man didn’t have to be paranoid. The brother accepts the argument and declares: “So he has no idea: it’s over.” They return the equipment. After a few minutes, the paranoid man crosses the street crying and saying that the cameramen had lied. Some people ask for the music to come back. “Foi numa noite de frio, que eu te encontrei com o coração vazio filho/Perdido e sem rumo, sem prumo e sem direção.” Soon the sound comes back, but the gas from the generator is running out. “I’m going to fill it with cachaça,” shouts a boy, dirty from head to toe, with a black eye and a corote in his hand (the little cachaça bottle). They roll out the generator cord a few times. Nothing happens. “Positive energy, now. Let’s remove all the negative energy,” says a man stretching his open hands over the generator. Someone pulls the cord and the engine suddenly starts. “Yes! I told you!” This joy is short-lived, though. “If the music doesn’t play I’m gonna take my clothes off!” shouts a man inside the tent when the engine fails again. “Let’s steal some gas!” cries another emboldened man standing near the amplifier. It’s no good. The generator has run out of gas, the sound is over, the launch party for the music made by two regulars of the flow has come to an end. Once more, Masa and a few others help carry the equipment back to the theater. When the group has already turned around the corner on Dino Bueno Boulevard toward Julio Prestes Square, Dennis turns up to say goodbye to Escobar. They get closer, talk quickly, and exchange a big hug. Translation: Laura Acost |